China tem competição inédita de cremação de mortos

Governo incentiva cremação com leis, metas e concursos - prática cresce mas ainda é tabu para alguns
"No início desta semana a China promoveu um concurso nacional no mínimo inusitado, quando mais de 50 pessoas competiram pelo inédito título de melhor cremador de mortos do país.


Nunca realizada antes, a competição traz à tona alguns dos pontos centrais da cultura chinesa no que diz respeito à morte e à preocupação com as terras disponíveis, além do desejo de estimular o orgulho nacional por uma profissão muito estigmatizada, similar à de coveiro.

Outros profissionais ligados a prestações de serviços, como cuidadores de idosos, também participaram do concurso nacional, e o vencedor receberá uma medalha no dia 1º de maio. Na competição dos cremadores, os três melhores colocados trabalham no famoso cemitério de Babaoshan, em Pequim, e o quarto vem da cidade de Nanchang.
A BBC destacou cinco pontos principais para entender o curioso concurso realizado no país de mais de 1,3 bilhão de pessoas – onde metade dos mais de 10 milhões de chineses mortos anualmente já é cremada, mas o enterro em covas de cemitério ainda é considerado a forma mais tradicional de lidar com cadáveres.

Num país onde homenagear os ancestrais é parte central da cultura, a cremação já foi considerada tabu e desrespeito, mas vem crescentemente ganhando adeptos, sobretudo após algumas províncias tornarem a prática obrigatória por lei.

1. Como se vence uma competição de cremação?

A imprensa estatal chinesa não deu muitos detalhes sobre o concurso, limitando-se a dizer que os competidores deveriam demonstrar "habilidades operacionais técnicas" e fazer um exame de conhecimentos sobre a profissão.

O governo não respondeu ao pedido da BBC por maiores informações.

Um documento num site do governo, no entanto, (em chinês), lista alguns dos atributos-chave avaliados pelos juízes, entre eles: a preparação do forno crematório, o recebimento e a cremação do cadáver, juntar as cinzas e manter e consertar equipamentos.

Um porta-voz do governo disse à agência de notícias Xinhua que ser um cremador inclui "ter uma atitude diligente e fazer a despedida dos falecidos de forma pacífica e holística".

Os entes queridos e familiares devem receber as cinzas da forma mais pura possível, "tão branca quanto o marfim e sem qualquer tipo de impureza".

2. Como é trabalhar como cremador na China?

Em antecipação ao concurso, a mídia estatal chinesa publicou reportagens contando um pouco do cotidiano de alguns dos competidores.

Metade dos 10 milhões de chineses mortos anualmente já é cremada, apesar da resistência à prática

Muitos relatam longos expedientes e problemas de saúde por trabalhar o dia todo em salas que podem chegar a 50º C de temperatura, além de lidar com fornos crematórios que podem atingir 600º C.

"Geralmente trabalhamos de dez a 12 horas em cada turno. Quando há um pico na carga de trabalho, podemos processar cerca de 250 a 260 cadáveres por dia, sem nem saber quando vamos para casa", diz Liu Yong, que trabalha num crematório de Xangai.

Já Cao Lianxing diz que um bom cremador precisa ser altamente qualificado. Ao lado de nove colegas, ele lida com mais de 10 mil corpos por ano em seu crematório na província de Jiangsu.

"Os ossos precisam ser queimados completamente, mas devem manter sua pureza branca. Não pode haver fumaça preta. Uma vez que o dia está encerrado, temos que esperar a fornalha esfriar para que possamos limpá-la e evitar qualquer tipo de entupimento", explica.

3. Qual é o objetivo do concurso?

De acordo com o governo chinês, uma das razões para promover a inusitada competição seria aumentar a autoestima dos cremadores e criar um sentimento positivo em torno da profissão, diante de uma aparente queda no número de pessoas dispostas a trabalhar na área.

Citando uma falta de compreensão da sociedade e os riscos de lidar com cadáveres, o governo disse em nota que há preconceito e estigma em torno da profissão.

Outro fator, no entanto, é a preocupação das autoridades chinesas com a quantidade de terras disponíveis para agricultura e expansão das cidades – daí a opção por incentivar os crematórios e não cemitérios tradicionais.

Atualmente, cerca de metade dos 10 milhões de chineses que morrem todos os anos é cremada, de acordo com estatísticas da Federação Europeia de Estudos Funerários. Mas apesar da expansão da atividade, há poucas pessoas querendo exercer a função e, por consequência, os locais amargam uma sobrecarga de trabalho.

4. Por que o Estado chinês quer encorajar o orgulho de cremar os mortos?

Enterro em cemitérios tradicionais estaria mais de acordo com crenças taoístas e confucionistas

O enterro em covas de cemitério ainda é considerado a forma mais tradicional de lidar com os mortos na China, mas o número de crematórios vem crescendo – sobretudo após algumas províncias terem tornado a prática obrigatória por lei –, e é preciso ter cada vez mais trabalhadores na área.

No ano passado o primeiro-ministro chinês Li Kegiang fez um chamado por uma reforma vocacional para manter a taxa de emprego e aumentar o número de profissionais atuando em setores de serviços e trabalhadores técnicos.

A prestação de serviços e as escolas técnicas são vistas com desprezo por muitos pais chineses, que preferem que seus filhos frequentem a universidade – algo visto como uma ironia num país fundado sobre os pilares do Comunismo Chinês, que sempre valorizou a importância do trabalhador.

5. Como a cremação se relaciona com a ideia chinesa da morte?

O impulso por mais cremações continua na China apesar de muitos ainda considerarem a prática desrespeitosa.

A cultura chinesa tem uma forte tradição de homenagear e venerar os ancestrais, algo influenciado também por crenças taoístas e confucionistas, segundo as quais "a destruição do corpo frequentemente significa a desconexão com a família e a ancestralidade, a demolição do lugar para onde retornar, e o desaparecimento da pessoa", argumenta Christina Han, da Universidade de Toronto, num artigo sobre cremação.

Ter um túmulo onde se pode prestar homenagens é algo tão importante no país que há um dia reservado para isso no calendário chinês, o Qing Ming, ou "Dia de Chorar nos Túmulos", semelhante ao Dia de Finados no Brasil.
Na ocasião, as famílias se juntam para limpar os túmulos e fazer oferendas aos espíritos dos que partiram.

Apesar do crescente número de cremações, o embate entre as crenças tradicionais chinesas e o incentivo do governo já surtem efeitos práticos na sociedade.

Em março, o jornal China Daily divulgou um aumento nos casos de roubos a túmulos e de suicídios de idosos que queriam ser enterrados antes do incentivo à cremação ganhar cunho oficial.

Em novembro de 2014, dois agentes do governo foram presos após supostamente terem comprado cadáveres de ladrões de túmulos para se adequarem às metas de cremação estipuladas pelo governo."

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